Na internet
e no celular, mensagens com imagens e comentários depreciativos se alastram
rapidamente e tornam o bullying ainda mais perverso. Como o espaço virtual é
ilimitado, o poder de agressão se amplia e a vítima se sente acuada mesmo fora
da escola. E o que é pior: muitas vezes, ela não sabe de quem se defender
Todo mundo
que convive com crianças e jovens sabe como eles são capazes de praticar
pequenas e grandes perversões. Debocham uns dos outros, criam os apelidos mais
estranhos, reparam nas mínimas "imperfeições" - e não perdoam nada.
Na escola, isso é bastante comum. Implicância, discriminação e agressões
verbais e físicas são muito mais frequentes do que o desejado. Esse
comportamento não é novo, mas a maneira como pesquisadores, médicos e
professores o encaram vem mudando. Há cerca de 15 anos, essas provocações
passaram a ser vistas como uma forma de violência e ganharam nome:
bullying(palavra do inglês que pode ser traduzida como "intimidar" ou
"amedrontar"). Sua principal característica é que a agressão (física,
moral ou material) é sempre intencional e repetida várias vezes sem uma
motivação específica. Mais recentemente, a tecnologia deu nova cara ao
problema. E-mails ameaçadores, mensagens negativas em sites de relacionamento e
torpedos com fotos e textos constrangedores para a vítima foram batizados de
cyberbullying. Aqui, no Brasil, vem aumentando rapidamente o número de casos de
violência desse tipo.
Três motivos que tornam o
cyberbullying ainda mais cruel que o bullying tradicional.
- No espaço
virtual, os xingamentos e as provocações estão permanentemente atormentando as
vítimas. Antes, o constrangimento ficava restrito aos momentos de convívio
dentro da escola. Agora é o tempo todo.
- Os jovens
utilizam cada vez mais ferramentas de internet e de troca de mensagens via
celular - e muitas vezes se expõem mais do que devem.
- A
tecnologia permite que, em alguns casos, seja muito difícil identificar o(s)
agressor(es), o que aumenta a sensação de impotência.
Raissa*, 13
anos, conta que colegas de classe criaram uma comunidade no Orkut (rede social
criada para compartilhar gostos e experiências com outras pessoas) em que
comparam fotos suas com as de mulheres feias. Tudo por causa de seu corte de
cabelo. "Eu me senti horrorosa e rezei para que meu cabelo crescesse
depressa."
Esse exemplo
mostra como a tecnologia permite que a agressão se repita indefinidamente (veja
as ilustrações ao longo da reportagem). A mensagem maldosa pode ser encaminhada
por e-mail para várias pessoas ao mesmo tempo e uma foto publicada na internet
acaba sendo vista por dezenas ou centenas de pessoas, algumas das quais nem
conhecem a vítima. "O grupo de agressores passa a ter muito mais poder com
essa ampliação do público", destaca Aramis Lopes, especialista em bullying
e cyberbullying e presidente do Departamento Científico de Segurança da Criança
e do Adolescente da Sociedade Brasileira de Pediatria. Ele chama a atenção para
o fato de que há sempre três personagens fundamentais nesse tipo de violência:
o agressor, a vítima e a plateia. Além disso, de acordo com Cléo Fante,
especialista em violência escolar, muitos efeitos são semelhantes para quem
ataca e é atacado: déficit de atenção, falta de concentração e desmotivação
para os estudos (leia mais na próxima página).
Esse
tormento permanente que a internet provoca faz com que a criança ou o
adolescente humilhados não se sintam mais seguros em lugar algum, em momento
algum. Na comparação com o bullying tradicional, bastava sair da escola e estar
com os amigos de verdade para se sentir seguro. Agora, com sua intimidade
invadida, todos podem ver os xingamentos e não existe fim de semana ou férias.
"O espaço do medo é ilimitado", diz Maria Tereza Maldonado,
psicoterapeuta e autora de A Face Oculta, que discute as implicações desse tipo
de violência. Pesquisa feita este ano pela organização não governamental Plan
com 5 mil estudantes brasileiros de 10 a 14 anos aponta que 17% já foram
vítimas de cyberbullying no mínimo uma vez. Desses, 13% foram insultados pelo
celular e os 87% restantes por textos e imagens enviados por e-mail ou via
sites de relacionamento.
Um xinga, o outro chora e o resto cai
na risada
Quando se
trata de bullying e cyberbullying, é comum pensar que há apenas dois
envolvidos: a vítima e o agressor. Mas os especialistas alertam para um
terceiro personagem fundamental: o espectador. Veja a seguir o que caracteriza
a ação de cada um deles nos casos de violência entre os jovens.
Vítima
Costuma ser
tímida ou pouco sociável e foge do padrão do restante da turma pela aparência
física (raça, altura, peso), pelo comportamento (melhor desempenho na escola)
ou ainda pela religião. Geralmente, é insegura e, quando agredida, fica
retraída e sofre, o que a torna um alvo ainda mais fácil. Segundo pesquisa da
ONG Plan, a maior parte das vítimas - 69% delas - tem entre 12 e 14 anos. Ana
Beatriz Barbosa Silva, médica e autora do livro Bullying: Mentes Perigosas na
Escola cita algumas das doenças identificadas como o resultado desses
relacionamentos conflituosos (e que também aparecem devido a tendências
pessoais), como angústia, ataques de ansiedade, transtorno do pânico,
depressão, anorexia e bulimia, além de fobia escolar e problemas de
socialização. A situação pode, inclusive, levar ao suicídio. Adolescentes que
foram agredidos correm o risco de se tornar adultos ansiosos, depressivos ou
violentos, reproduzindo em seus relacionamentos sociais aqueles vividos no
ambiente escolar. Alguns também se sentem incapazes de se livrar do
cyberbullying. Por serem calados ou sensíveis, têm medo de se manifestar ou não
encontram força suficiente para isso. Outros até concordam com a agressão, de
acordo com Luciene Tognetta. O discurso deles vai no seguinte sentido: "Se
sou gorda, por que vou dizer o contrário?" Aqueles que conseguem reagir
alternam momentos de ansiedade e agressividade. Para mostrar que não é covarde
ou quando percebe que seus agressores ficaram impunes, a vítima pode escolher
outras pessoas mais indefesas e passam a provocá-las, tornando-se alvo e
agressor ao mesmo tempo.
Agressor
Atinge o
colega com repetidas humilhações ou depreciações porque quer ser mais popular,
se sentir poderoso e obter uma boa imagem de si mesmo. É uma pessoa que não
aprendeu a transformar sua raiva em diálogo e para quem o sofrimento do outro
não é motivo para ele deixar de agir. Pelo contrário, se sente satisfeito com a
reação do agredido, supondo ou antecipando quão dolorosa será aquela crueldade
vivida pela vítima. O anonimato possibilitado pelo cyberbullying favorece a sua
ação. Usa o computador sem ser submetido a julgamento por não estar exposto aos
demais. Normalmente, mantém esse comportamento por longos períodos e, muitas
vezes, quando adulto, continua depreciando outros para chamar a atenção.
"O agressor, assim como a vítima, tem dificuldade de sair de seu papel e
retomar valores esquecidos ou formar novos", explica Luciene.
Espectador
Nem sempre
reconhecido como personagem atuante em uma agressão, é fundamental para a
continuidade do conflito. O espectador típico é uma testemunha dos fatos: não
sai em defesa da vítima nem se junta aos agressores. Quando recebe uma
mensagem, não repassa. Essa atitude passiva ocorre por medo de também ser alvo
de ataques ou por falta de iniciativa para tomar partido. "O espectador
pode ter senso de justiça, mas não indignação suficiente para assumir uma
posição clara", diz Luciene. Também considerados espectadores, há os que
atuam como uma plateia ativa ou uma torcida, reforçando a agressão, rindo ou
dizendo palavras de incentivo. Eles retransmitem imagens ou fofocas,
tornando-se coautores ou corresponsáveis.
Aprender a lidar com a própria imagem
é o primeiro passo
Luciene
Tognetta, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), explica que por volta dos 10 ou 12 anos a criança passa a buscar, no
convívio social, referências diferentes das que sempre recebeu em casa, dando
continuidade ao processo de construção de sua personalidade. "Essa é a
época de aprender a lidar com a própria imagem. Se essa criança se conhece e
gosta de como é, consegue manifestar sentimentos e pensamentos de maneira
equilibrada. Do contrário, pode sentir prazer em menosprezar o outro para se
afirmar."
Logo em
seguida, juntamente com a entrada na adolescência, vem a necessidade de
pertencer a um grupo. Nesse momento, basta sair um pouco do padrão (alto,
baixo, gordo, magro) para ser provocado. Foi o que aconteceu com Aline, 14
anos. Ela recebia mensagens de uma colega falando que estava gorda. A
agressora, que a ameaçava e a proibia de contar sobre essas conversas, mandava
também dietas e dizia que, caso não perdesse peso, iria apanhar. A professora
das duas lembra: "Ela fez de tudo para agradar à colega e seguiu as
indicações porque sentia medo. A escola e os pais só desconfiaram que havia
algo de errado porque perceberam uma mudança repentina no comportamento da
vítima".
Algumas
escolas já estão cientes de que é preciso um acompanhamento permanente para
afastar as agressões do cotidiano. A EM Fernando Tude de Souza, no Rio de
Janeiro, por exemplo, atacou o problema com atividades que buscam garantir o
bom relacionamento entre os estudantes. "Reuniões conjuntas com pais e
alunos e um olhar atento ao comportamento dos jovens dentro e fora de sala de
aula precisam entrar no planejamento", afirma a coordenadora pedagógica
Tânia Maselli Saldanha Leite.
Principais
ações que toda escola pode adotar, tanto para prevenir o problema como para
combatê-lo, quando o caso já se tornou público.
Prevenção e solução nas mãos da
escola
De acordo
com os especialistas, a escola precisa encarar com seriedade as agressões entre
os alunos. O cyberbullying não pode ser visto como uma brincadeira de criança.
A busca pela solução ou pela prevenção inclui reunir todos - equipe pedagógica,
pais e alunos que estão ou não envolvidos diretamente - e garantir que tomem
consciência de que existe um problema e não se pode ficar omisso. Veja, a
seguir, ações ao alcance das escolas.
- Como prevenir
Ensinar a
olhar para o outro Criar relacionamentos saudáveis, em que os colegas tolerem
as diferenças e tenham senso de proteção coletiva e lealdade. É preciso
desenvolver no grupo a capacidade de se preocupar com o outro, construindo uma
imagem positiva de si e de quem está no entorno.
Deixar a
turma falar Num ambiente equilibrado, o professor forma vínculos estreitos com
os estudantes, que mostram o que os deixa descontentes e são, de fato,
reconhecidos quando estão sofrendo - o que é diferente de achar que não há
motivo para se chatear.
Dar o
exemplo Se a equipe da escola age com violência e autoritarismo, os jovens
aprendem que gritos e indiferença são formas normais de enfrentar
insatisfações. Os professores sempre são modelo (para o bem e para o mal).
Mostrar os
limites É essencial estabelecer normas e justificar por que devem ser seguidas.
Às vezes, por medo de ser rígidos demais, os educadores deixam os adolescentes
soltos. Mas eles nem sempre sabem o que é melhor fazer e precisam de um norte.
Alertar para
os riscos da tecnologia O aluno deve estar ciente da necessidade de limitar a
divulgação de dados pessoais nos sites de relacionamento, o tempo de uso do
computador e os conteúdos acessados. Quanto menos exposição da intimidade e
menor o número de relações virtuais, mais seguro ele estará.
Ficar atento
Com um trabalho de conscientização constante, os casos se resolvem antes de
estourar. Reuniões com pais e encontros com grupos de alunos ajudam a evitar
que o problema se instale.
- Como resolver
Reconhecer
os sinais Identificar as mudanças no comportamento dos alunos ajuda a
identificar casos de cyberbullying. É comum as vítimas se queixarem de dores e
de falta de vontade de ir à escola.
Fazer um
diagnóstico Uma boa saída é realizar uma sondagem, aplicando questionários para
verificar como os alunos se relacionam - sem que sejam identificados. As
informações servem de base para discussões sobre como melhorar o quadro. Quando
os alunos leem, compartilham histórias e refletem sobre elas, ficam mais
comprometidos.
Falar com os
envolvidos Identificados os indícios, é hora de conversar com a vítima e o
agressor em particular - para que não sejam expostos. A escola não pode
legitimar a atuação do agressor nem puni-lo com sanções não relacionadas ao mal
que causou, como proibi-lo de frequentar o intervalo. Se xingou um colega nos
sites de relacionamento, precisa retirar o que disse no mesmo meio para que a
retratação seja pública. A vítima precisa estar fortalecida e segura de que não
será mais prejudicada. Ao mesmo tempo, o foco deve se voltar para a recuperação
de valores essenciais, como o respeito.
Encaminhar
os casos a outras instâncias Nas situações mais extremas, é possível levar o
problema a delegacias especializadas em crimes digitais. Para que os e-mails
com ameaças possam ser tomados como prova, eles devem ser impressos, mas é
essencial que também sejam guardados no computador para que a origem das
mensagens seja rastreada. Nos sites de relacionamento, existe uma opção de
denúncia de conteúdos impróprios em suas páginas e, em certos casos, o conteúdo
agressivo é tirado do ar.
Mesmo quando a agressão é virtual, o
estrago é real
O
cyberbullying é um problema crescente justamente porque os jovens usam cada vez
mais a tecnologia - até para conceder entrevistas, como fez Ana, 13 anos, que
contou sua história para esta reportagem via MSN (programa de troca de
mensagens instantâneas). Ela já era perseguida na escola - e passou a ser
acuada, prisioneira de seus agressores via internet. Hoje, vive com medo e
deixou de adicionar "amigos" em seu perfil no Orkut. Além disso,
restringiu o aceso ao MSN. Mesmo assim, o tormento continua. As meninas de sua
sala enviam mensagens depreciativas, com apelidos maldosos e recados
humilhantes, para amigos comuns. Os qualificativos mais leves são "nojenta,
nerd e lésbica". Outros textos dizem: "Você deveria parar de falar
com aquela piranha" e "A emo já mudou sua cabeça, hein? Vá pro
inferno". Ana, é claro, fica arrasada. "Uso preto, ouço rock e pinto
o cabelo. Curto coisas diferentes e falo de outros assuntos. Por isso, não me
aceitam." A escola e a família da garota têm se reunido com alunos e pais
para tentar resolver a situação - por enquanto, sem sucesso.
Pesquisa da
Fundação Telefônica no estado de São Paulo em 2008 apontou que 68% dos adolescentes
ficam online pelo menos uma hora por dia durante a semana. Outro levantamento,
feito pela ComScore este ano, revela que os jovens com mais de 15 anos acessam
os blogs e as redes sociais 46,7 vezes ao mês (a média mundial é de 27 vezes
por semana). Marcelo Coutinho, especialista no tema e professor da Fundação
Getulio Vargas (FGV), diz que esses estudantes não percebem as armadilhas dos
relacionamentos digitais. "Para eles, é tudo real, como se fosse do jeito
tradicional, tanto para fazer amigos como para comprar, aprender ou combinar um
passeio."
No cinema,
essa overdose de tecnologia foi retratada em As Melhores Coisas do Mundo, de
Laís Bodanzky. A fita conta a história de dois irmãos que passam por mudanças
no relacionamento com os pais e os colegas. Boa parte da trama ocorre num
colégio particular em que os dois adolescentes estudam. O cyberbullying é
mostrado de duas formas: uma das personagens mantém um blog com fofocas e há
ainda a troca de mensagens comprometedoras pelo celular. A foto de uma aluna
numa pose sensual começa a circular sem sua autorização.
Na vida
real, Antonio, 12 anos, também foi vítima de agressões pelo celular. Há dois
meses, ele recebe mensagens de meninas, como "Ou você fica comigo ou
espalho pra todo mundo que você gosta de homem". Os amigos o pressionam
para ceder ao assédio e, como diz a coordenadora pedagógica, além de lidar com
as provocações das meninas, ele tem de se justificar com os outros garotos.
Online, o agressor pode agir sem que
precise se identificar
A terceira
principal marca do cyberbullying é a possibilidade de o agressor agir na
sombra. Ele pode criar um perfil falso no Orkut ou uma conta fictícia de e-mail
(ou ainda roubar a senha de outra pessoa) para mandar seus recados maldosos e
desaforados. Paulo, 19 anos, teve sua foto publicada sem autorização na
internet durante três anos (a imagem era uma montagem com seu rosto, uma boca
enorme e uma gozação com um movimento que fazia com a língua). Ele nunca
conseguiu descobrir quem eram seus algozes. "Eu não confiava mais em
nenhum dos meus colegas", lembra. Seu desempenho escolar caiu e ele foi
reprovado. Pediu transferência, mas, mesmo longe dos agressores, ainda sente os
efeitos da situação. Toma medicamentos e tem o acompanhamento de um psicólogo.
Tudo indica que os que o atazanavam na sala de aula estavam por trás do perfil
falso.
E essa
situação é totalmente nova na comparação com o bullying tradicional. Para
agredir de forma virtual, não é necessário ser o mais forte, pertencer a um
grupo ou ter coragem de se manifestar em público, no pátio da escola ou na
classe. Basta ter acesso a um celular ou à internet. Por isso, muitos desses
novos agressores nem sabem dizer por que fazem o que fazem. Na pesquisa da ONG,
metade deles respondeu a essa pergunta com frases como "foi por
brincadeira", "não sei" e "as vítimas mereciam o
castigo". Luciana Ruffo, do Núcleo de Pesquisa da Psicologia da
Informática, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), diz
que, "no bullying cara a cara, o agressor vê que a humilhação faz efeito
porque a vítima sofre em público. Agora, basta imaginar esse sofrimento para o
jovem se sentir realizado com a provocação virtual". Num ambiente em que
essa dinâmica se instala, está claro que as relações não estão construídas com
base em valores sólidos. Por isso, trabalhar para que o cyberbullyingdeixe de fazer
parte da rotina é uma tarefa de toda a equipe escolar.
Fonte:
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